realidade natural ou realidade abstrata
exposição de Helen Faganello e Bettina Vaz Guimarães no Espaço T, cidade do Porto, Portugal
Por Maria de Fátima Lambert
“Y: Que beleza!
X: Que profundidade de tom e colorido!
Z: Que repouso!
Y: Afinal, a si, a natureza também o emociona?
Z: Se não fosse assim, não seria pintor.
Y: Como você já não pinta o natural, pensei que já não o impressionava nada.
Z: Pelo contrário. A Natureza emociona-me profundamente. Só que tenho de a pintar de um outro modo.”1
As intervenções de Bettina Vaz Guimarães e de Helen Faganello dão continuidade a um trabalho de pesquisa sobre o espaço da/na Quase Galeria, estabelecendo sempre novas vontades estéticas e configurações plásticas – desenvolvido desde 2008 e assegurado mediante a apresentação de artistas de diferentes gerações e países, em particular portugueses e brasileiros. Assim, se promovem os diálogos interculturais e intergeracionais, procurando um enriquecimento mútuo e a divulgação de ideias, obras e identidades.
No presente caso, trata-se da concretização de intervenções específicas mostrando como um espaço é alterado de forma constitutiva, quase entranhada, transformando- o relativamente àquilo que quando vazio e despojado, aparenta ser.
As determinações de localização e expansão no espaço físico da galeria atravessam as fronteiras da sua arquitetura mais quieta. Ou seja, a inserção e viagem de estruturas bi e tridimensionais institui alterações significativas, demonstrando como os dados da perceção podem ser transformados e extrapolam os limites aparenciais de incursões tomadas como possíveis.
“Realidade Natural ou realidade abstrata”, a partir do título homónimo do livro de Mondrian, pareceu-me uma síntese do pensamento das duas artistas atendendo aos conceitos que estruturam as presentes intervenções.
Qual é a realidade matural e qual a realidade abstrata? Quando uma interfere na outra? E como as determinamos e caraterizamos como tal? Será que – de algum modo ambíguo – quase se equivalem? Qual a percentagem de natureza patente na planificação geométrico-abstrata que explicite uma composição que avança sobre a convencionalidade bidimensional, travessando-se em espessura e volumetria plasmado no vazio do espaço?
A intenção das artistas paulistanas coincide numa abordagem ao espaço físico da sala da galeria, baseado num primeiro conhecimento possível, intermediado através de plantas e fotografias que fui mostrando e enviando desde junho de 2013. Durante quase cerca de um ano, a metodologia de trabalho desencadeou-se, com momentos em que, estando em São Paulo, me foi possível reunir com as artistas e confirmámos estratégias de “aproximação” a transladar, posteriormente, para o “in loco”. A partir da análise de montagens de exposições e intervenções anteriores, na sequência de inúmeras conversas e, sobretudo, uma pesquisa acurada que uma e outra desenvolveram, surgiu a deliberação para estes projetos in situ. Os conceitos fundamentais que presidem e subsidiam as obras permitam concatenações e projeção de relacionalidades e confrontos, resumidos assim:
“A natureza, que no seu ser e no seu sentido profundos nada sabe da individualidade, graças ao olhar humano que a divide e das partes constitui unidades particulares, é reorganizada para ser a individualidade respectiva que apelidamos de "paisagem".”2
A Natureza está lá, disponível para ser olhada, tocada, cheirada, mastigada e querendo ser cativada em imagens que os humanos inventam. A Natureza existe e os filósofos pré-socráticas encontraram argumentações fundadas em matérias pulsáteis primordiais – os 4 elementos – para explicar como o mundo surgiu assim. A natureza convoca esses quatro elementos que, em meados do séc. XX, Bachelard organizou por confronto com as explicitações prioritárias/matérias que os criadores privilegiam3. Nem sempre existiu paisagem. Isso, por certo. A paisagem, no Ocidente é invenção mais recente que no Oriente. Demorou, tomou posse, determinou condições para sobrevivência e, definitivamente, expandiu-se e persiste.
“Por natureza entendemos o nexo infindo das coisas, a ininterrupta parturição e aniquilação das formas, a unidade ondeante do acontecer, que se expressa na continuidade da existência espacial e temporal.” (...)
"Um pedaço de natureza" é, em rigor, uma contradição em si; a natureza não tem fracções; é a unidade de um todo, e no momento em que dela algo se aparta deixará inteiramente de ser natureza, porque ele só pode existir justamente no seio dessa unidade sem fronteiras, só pode existir como uma onda da torrente conjunta que é a "natureza".4
O conceito de Natureza, em termos epistemológicos, remete para uma abordagem específica, situada nas indagações históricas da Filosofia da Natureza, que tanto foi ponderada por autores de diferentes tempos e doutrinas. Pensar a natureza significa pensar a origem do mundo, a sua ordem e organização, harmonia, proporção e simetria...relembrando a estética dos pitagóricos, nas suas convicções hermetistas e sagradas. Bem como a convocação do pensamento pré-socrático que buscou nos 4 elementos, o fundamento da Criação. A natureza, temível e incompreensível, sedimentou os questionamentos desde as origens da humanidade, sempre promulgando a necessidade de se densificar e sistematizar em saberes tranquilizadores que, progressivamente assegurassem o domínio do homem sobre, exatamente...a natureza e seus fenómenos terríficos! Nesta consciência do perigo, dos riscos que ao longo de séculos, o homem provocou a si e seus semelhantes, surge a consignação antecipatória, o alerta que Helen Faganello corporalizou numa visão idealista e de equívoca tranquilidade, lentidão e quietude.
“Inúmeras vezes deambulamos pela natureza livre e avistamos, com os mais variados graus de atenção, árvores, cursos de água, prados e searas, colinas e casas e outras mil alterações da luz e das nuvens - mas, lá por atendermos a um pormenor ou contemplarmos isto ou aquilo, ainda não estamos conscientes de ver uma "paisagem". Pelo contrário, semelhante conteúdo particular do campo visual não há-de acorrentar o nosso espírito.”5
Na sua intervenção vemos elementos consignados que entrelaçados constituem uma extensão de paisagem.
A paisagem é uma decisão e exige a demarcação de lugar: estabelece e localiza: “Ver como paisagem uma parcela de chão com o que ele comporta significa então, por seu turno, considerar um excerto da natureza como unidade - o que se afasta inteiramente do conceito de natureza.”6
Ser e designar paisagem Implica um ato consciente, a deliberação de alguém relativamente a um território que é despossuído, todavia suscetível de ser escolhido. Perante a “panorâmica” , esta veduta que nos é presencializada, questiona-se se estamos perante natureza, se perante paisagem ou se ambas se contaminam, concebendo uma unidade terceira e congregadora de efabulações estéticas e antropológico-culturais (simbólicas).
A Natureza entra dentro de casa (que é a galeria), fixa-se nas suas paredes. Decididamente, neste caso a natureza não precisa de ser paisagem sozinha e estabelecida...pode vaguear na receção que cada visitante e espetador lhe atribue pois lhe permite criar associações de caminhadas, jornadas e errâncias, contrariando o sedentarismo da casa. A natureza traz o “deserto” de ausências, se ninguém estiver em casa... e mesmo que esteja...fica plasmada a identidade pessoalizada da perceção que cada um de nós atribua a este mundo cativado que está disponível a ser mergulhado.
A intervenção de Helen Faganello intitula-se “Sem título com casamatas”. Casamata evoca o contexto de guerra, de resistência...todavia não há rasto nítido ou direto de seres humanos na natureza, tampouco de figuras na paisagem. Todavia as construções são produto do humano em sociedade, testemunho da sua vivência cohabitada, participada. A casa em versão casamata pode também assumir o seu papel no universo do pensamento bachelardiano, obrigando a descodificação de sentidos concatenados que contribuem para aceder à essência primordial. As paredes, os cantos, as janelas e portas, tanto quanto, as escadas e o sótão asseguram o seu estado encantatório, devidamente assinado pelas caraterísticas fatuais da arquitetura que a determinou enquanto casa.
Pontuando a visita às intervenções, saliente-se que estão lá:
1. Flores e folhas, móveis e periscópios na sala, estando a porta da varanda fechada. (Helen Faganello)
2. Mapa de estudo de cores a subir através do vazado do mezanino e até à claraboia. (Bettina Vaz Guimarães)
“A casa é conceito de síntese que concilia (por vezes) os patamares do individual e do gregário; orienta-se (quase sempre) pela integração entre o interior e o exterior; dirige (com forte razão de sucesso) a reconciliação entre pensamentos, recordações e sonhos; derrota (oh! utopia!) o maniqueísmo judaico-cristão – corpo e alma.
As casas prendem-se a um sítio específico, embora existam casas que foram movidas para territórios mais auspiciosos. Foram levadas pela força sobre-humana de pessoas e comunidades. Considero-as: casas-viagem-sobrevivência. Mas, a maior parte das casas prefere uma boa decisão hierática e quieta; tal como se lhes reconhece a estabilidade, em mapas de pormenor e demais topografias.
A casa é abrigo ou (apenas) tolera o homem/microcosmos. Deveria ser o ecossistema personalizado e intransmissível de cada um, antes de ser propriedade privada (em consagração sociológica).”
A casa é habitada pelas cores que ocupam um pensamento exploratório, empreendido por Bettina Vaz Guimarães, e concretizando-se em estudos sucessivos destinados a espaços escolhidos. Esses desenhos com cor sistematizam uma indagação assim como um reconhecimento do local tomado como “alvo” para intervenção. Os locais trabalhados pela artista permitem uma auscultação progressiva, desenrolada a partir da teorização e abordagem filosófica da cor, sobretudo, fundada em Josef Albers.
Contrariamente às casamatas/casas de Helen Faganello, em Bettina Vaz Guimarães as casas são o continente para abrigar as cores. As cores são escolhidas, concebidas a partir de sequencialidades possibilitadas pela ars combinatória estipulaladora, revendo e prevendo, situação a situação. Entre os estudos destinados aos diferentes tópicos arquitetónicoas existem uma espécie de passagem de testemunho. As cores atravessam os lugares, convertendo-os em simulacros de indagação pessoal exprimida pela sua dinâmica, nos planos de cor racional e intuitivamente vivificados. O vazio está no dentro da casa, não necessariamente, no exterior desse habitáculo. A casa pode assumir-se também como o espaço para alocação de obras artísticas, sendo casa de todos – Espaço T.
Nem todas as casas significam dimensionamento gregário. As casas podem isolar-se para contentar os eremitas, esses que são, de certa forma, ausentes do gregário – ainda que consignados à responsabilidade moral e societária. Então, regressando às definições de Helen Faganello, pense-se em casas que se isolam no deserto, saudando uma vastidão sozinha e apocalítica mesmo. Lembre-se Wim Wenders, no filme Até o fim do mundo (1991), entre outras obras antecipatórias do suposto “fim dos tempos”.
Não importa qual o tempo. O tempo dos eremitas e dos ausentes está sem tempo para ser. Daí, a necessidade dos periscópios que espreitam, saindo de locais inesperados do “dentro” da paisagem pintada que é muito mais “natureza” do que invenção. Os periscópios são metáforas de ausência. Presentificam os humanos ausentados num tempo em que, porventura Helen Faganello sinalizou esse “fim dos tempos”. Pode especular-se acerca da total ausência de humanidade num futuro projetado numa datação sem fim. Por outro lado, o tipo de habitação representada remete para a memória das casas palustres. Uma tal tipologia de habitação organiza o pensamento, retrocedendo até uma cronologia dos primórdios da civilização, uma indexação, portanto, de um período em que os homens estavam “dentro” da natureza, não da paisagem. Um tempo primordial, arquetípico. Assim, esta figuração do habitado possui uma valência arquetípica. E, simultaneamente, ambos os conceitos são convocados: natureza e paisagem.
As flores, as folhas são catos. Os catos associam-se aos terrenos desertificados, que é exatamente o caso plasmado da realidade imaginária desta intervenção de Helen Faganello, concebida especificamente para a sala da Quase Galeria. Gera-se um ambiente de “desertificação”, propugnando valores existenciais de uma civilização que, porventura, foi erradicada ou, plausível também, retirada por decisão própria.
Rampa de cor que dá continuidade à luz e à cor, emanando da sala; ilusão de um tempo que é polícrono e polícromo (Edward T. Hall): tempo constituído de muitas coisas acontecendo e situações existindo, tantas assim quanto os tempos que se sobrepõem sobre si. São as misturas do tempo
“Se dizemos “vermelho” (o nome de uma cor) e estão cinquenta pessoas a ouvir- nos, é de se esperar que haja cinquenta vermelhos nas suas mentes. E podemos ter a certeza de que todos esses vermelhos serão diferentes.”7
Enunciem-se alguns tópicos desenvolvidos por Josef Albers nas suas reflexões sobre as interações das cores que potencializem a análise da obra de Bettina Vaz Guimarães:
“Misturas óticas” > perceção e matérias de cor: nenhuma das placas de cartão pinto tem a mesma tonalidade; por mais impercetível que possa aparentar: todas as 600 placas têm cores diferentes; cabe ao espetador conseguir destrinçar a ténue diferença de tom que seja mais alto ou mais baixo do que aquele que se lhe assemelha;
Transparência e ilusão do espaço > as cores são espessas e cativas; o ar torna-se denso, pois foi criada uma parede estreita e comprida, onde as cores iludem a curvatura e os pontos de equilíbrio quase tropeçam;
Fronteiras de cor e ação plástica > seus detalhes e pormenores tonais concatenados fechados dentro do formato padronizado que uniformiza a posse no espaço, no ar. Afirmam-se as cores no ar, garantindo a sedução do volume espalmado e decidido;
Relatividade da Cor e suas subtilezas > Apesar dessa firmeza e decisão irrevogável que a sua presença marca no espaço, fá-lo com a maior subtileza, conjugando perceções individuadas e movimentos oscilatórios. Esse jogo percecional toma a dianteira sobre a relatividade e institui um jogo lúdico definível e gozoso.
Assim, reforce-se essa ideia de quanto a cor flui e reflui, constituindo um foco secular de fruição, pesquisa, jogo que ainda amais é potenciada quando adquire consistência em espaço físico que albergue gente e propicia o movimento para ver.
Ambas intervenções permitem estabelecer um circuito nas duas salas da galeria onde o movimento do visitante acompanha as vicissitudes das intenções das artistas. Uma é uma, sem mais: cada sala se converte num mundozinho aberto e suscetível de rasgar os seus limites desenhados ou cromatizados.
De dentro da sala onde as solicitações do deserto se agravam, anuncia-se uma rampa para o infinito, verificando que o caminho é dominado. A rampa de rectângulos de cores que concentram e distendem – sístole, diástole – converte a linha rígida em sinuosa curva que molda o mundo. Assinalam a capacidade de agir sobre o espaço desconhecido, assimilando o conhecimento artístico e encontrando estratégias para comunicar entre culturas que sejam cúmplices e ricas de significados, expandindo propostas a serem mais e mais exploradas, pois geradoras de novas assunções. A criação/conceção artística vive dessas revisitações de uma lembrança singular do artista sobre si, manifestando as suas convicções e assegurando-lhes a genuinidade que atinge os demais, sendo gregária, na unidade disponível para todos.
É um mundo feito de camadas, na obra de Bettina, onde recorde a lucidez dos Walldrawings polícromos de Sol Lewitt, nessa plenitude da assunção ímpar das cores. Em Helen Faganello, trata-se de sedimentações, de palimpsestos tecidos pela trama de memórias inusitadas e dramáticas, no isolamento, lonjura e memória...
Concatenadas, para os visitantes apresentam-se duas visões do mundo em complementaridade e saber.
A invenção torna visível a ideia de que repetir exige repetir até ser perigosamente celebrada num clamor expandido em direção à luz – neste caso desta casa, da claraboia.
Maria de Fátima Lambert, maio de 2014.
1 Mondrian, Realidad Natural y Realidad Abstracta, BCN, Barral Editores, 1973, p.96
2 Georg Simmel, A Filosofia da Paisagem, Covilhã, Universidade da Beira Interior, 2009, p.7
3 Terra: La terre et les rêveries du repos (1946); La terre et les rêveries de la volonté (1948)
Água: L'eau et les rêves (1942); Ar: L'air et les songes (1943); Fogo: La flamme d'une chandelle (1961)
4 Georg Simmel, A Filosofia da Paisagem, Covilhã, Universidade da Beira Interior, 2009, p.5
5 Georg Simmel, A Filosofia da Paisagem, Covilhã, Universidade da Beira Interior, 2009, p.5
6 Idem, ibidem, p.6
7 Josef Albers, La interacción del Color, Madrid, Alianza Forma, p.10 (tradução minha)